quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Diálogos

Com a série Diálogos, Fernando França apresenta um inédito registro pictórico de artistas com nomeada importância no panorama das artes plásticas do Ceará nos últimos 50 anos. Utilizando a técnica óleo sobre tela, no formato de 1,5m x 2,5m, Fernando pintou 22 retratos individuais de Estrigas, Nice, Descartes Gadelha, Heloísa Juaçaba, Hélio Rola, José Tarcísio, Tarcísio Félix, Roberto Galvão, José Guedes, Aderson Medeiros, Carlos Costa, Ascal, Mesquita, Eduardo Elóy, Francisco Vidal Júnior, Alano de Freitas, Francisco de Almeida, Mano Alencar, Vando Figuêiredo, Totonho Laprovítera, Cláudio Cézar e Hemetério, além de seu próprio auto-retrato. Por retratar criadores de reconhecido vulto e originalidade, essa coleção já poderia ser considerada, por si só, obra de referência a quem pretendesse adentrar no universo da arte produzida em nosso Estado. Todavia, o mérito da série Diálogos não reside somente em seu valor histórico e social, mas na dimensão humana e artística exposta em cada quadro.
Na arte do retrato, segundo o crítico e teórico Omar Calabrese, “continuidade e contigüidade são essencialmente mostradas não pela cena, mas pela dimensão e pela atitude da personagem representada”. O retrato é direcionado para representação imagética de uma pessoa, porém sua significação não se reduz apenas à efígie, mas a tudo que se insere no interior do quadro. Disso se depreende que, juntamente com a expressão, também um posicionamento, uma marca, um objeto de cena ou a própria linguagem pictórica sugerem uma personalidade para o retratado. Nesse sentido, além dos caracteres fisionômicos da figura retratada, os elementos todos que compõem o quadro igualmente direcionam o olhar do espectador para um entendimento global do retrato.

De forma ampla, no seu processo de imitação do real, o artista acaba por criar um universo paralelo que transcende a realidade sugerida. Uma obra de arte, quando realizada com verdade (e entenda-se o termo como algo necessário ao artista), mesmo que apresente elementos que apontem para um meio externo, acaba por refletir a realidade de pensamento e de sentimento do seu criador. Especificamente, na arte do retrato, o retratista tenta conceber sua obra a partir de uma análise psicológica do retratado, por vezes, numa indicação com o meio social onde este se insere. Ao apresentar uma fisionomia, através de gestos e olhares, ele procura suscitar a essência do ser que é exposto na tela. Ora, se confrontarmos tais conceitos, surge uma questão: como aliar a percepção do retratista com a recepção do espectador que remeta a um possível universo do retratado?

Na criação de seus Diálogos, Fernando França não ficou alheio a esse questionamento. Aceitou o desafio de retratar, dentro de uma mesma série, artistas tão distintos entre si, com estilos e universos particulares. Para tanto, percebeu que era preciso reinventar a forma de apresentar o modelo. Como resultado, realizou uma obra que amplia as possibilidades de concepção do retrato, indicando uma nova perspectiva na sua apreciação por parte do espectador.

A série Diálogos revela uma proposição inovadora para a arte do retrato, primeiramente, porque, na composição de cada quadro, o retratista incluiu um balão (elemento semiótico da linguagem das histórias em quadrinhos) para sugerir a fala ou pensamento dos retratados. Essa fala ou pensamento, representados dentro dos espaços dos respectivos balões, evidencia, por sua vez, a linguagem artística do pintor retratado, que realiza o seu trabalho no interior dos balões. Assim, ao intervir em seu próprio retrato, o artista-modelo tornou-se co-autor da obra, criando um significativo diálogo imagético entre cada artista retratado e o retratista.

Através da inserção desses balões (aos moldes das histórias em quadrinhos), compostos de uma pintura feita pelo próprio punho do retratado, ocorre uma sugestão de fala ou pensamento. Tal inserção, feita por mão que não seja a do retratista, poderia redundar na idéia de um quadro dentro do quadro. No entanto, o diálogo estabelecido entre os partícipes da composição alonga a cadeia artística, numa inovação da arte do retrato, ampliando seus conceitos. Isso ocorre porque o espectador, ao mesmo tempo em que contempla o retrato de um artista, também observa sua obra; o pintor retratista, ao mesmo tempo em que retrata, sofre do retratado intervenção em sua obra; o artista retratado, ao mesmo tempo em que se deixa posar, intervêm no quadro com sua pintura. A obra final funciona então como um jogo de espelhos, onde cada elemento atua individualmente, recebendo do outro um quinhão de significados.

Devido à singular correlação artística entre os elementos integrantes de cada pintura, observa-se que esses Diálogos não implicam apenas numa mera criação de retratos. Para além da representação pictórica de artistas, os retratos resultam num profícuo diálogo imagético com os pintores retratados e seus mais diferentes estilos. Ao expor cada artista, no qual a própria figura retratada se insere diretamente com pintura de sua lavra no interior da obra, Fernando França propõe um diálogo entre os artistas atuantes no quadro.
Como já afirmamos, na composição de um retrato, a figura retratada é tradicionalmente avaliada pelo espectador a partir de elementos visuais sugestivos. Tais elementos, que funcionam como símbolos alegóricos, são captados e compostos numa proposição filtrada pelo olhar do retratista. Através da intervenção do próprio artista retratado no quadro, expondo representativamente uma fala ou pensamento, Fernando ampliou tal conceito, aumentando as possibilidades interpretativas do espectador ao contemplar a figura exposta.

O artista é a sua obra. A partir da exposição de um universo artístico pessoal, ele deixa transparecer muito de sua personalidade. Partindo desse princípio, na série Diálogos, o retratista cede espaço dentro do quadro para que seu modelo possa se descrever diretamente, apresentando suas idéias através de sua própria pintura. Se a pintura é um conjunto em que todas as pigmentações se unem para formar uma imagem, e todas as imagens formam a obra, ao interferir com uma composição sua no interior do quadro, o artista retratado lança um olhar referente à sua própria efígie. Ao fazer a intervenção de pintura no balão, como exposição imagética de fala ou pensamento, cada artista retratado apresenta um olhar interior sobre sua própria figura, desnudando-a.

A imagem, feita pelo pintor retratado, passa a estabelecer uma relação com seu retrato, gerando certa tensão compositiva, que interfere ativamente na sua apreensão pelo espectador. A obra do artista retratado surge então como símbolo a iluminar o entendimento global do quadro. Com essa intervenção reflexa, o retrato toma contornos de auto-referência. A proposta artística desses Diálogos não é, portanto, apenas criar um simples retrato, mas, numa aproximação ao conceito de auto-retrato, criar um retrato auto-referente.

Vale ressaltar que, nesses Diálogos, não há simplesmente retratos de artistas, feitos a partir da visão de outrem, mas, cada um é o retrato do artista para além da visão do outro. Se, num retrato comum, a figura aparece numa visualização exterior, na série proposta por Fernando França, o conceito de percepção da obra toma nova significação intensificada pelo elemento pictórico que o retratado apresenta no quadro, direcionando o entendimento do espectador a partir do que contempla. Com essa referência de fala ou pensamento do retratado, amplia-se a forma de recepção do mesmo por parte do espectador, delineando-se uma nova abordagem conceitual da arte do retrato.

Concluímos, pois, que Fernando França não objetivou apenas criar uma coleção de retratos que apresenta importantes criadores da arte cearense, nem somente sugerir suas individualidades, tentando apreender a personalidade de cada retratado. Observamos que a proposta compositiva de seus Diálogos não se limitou a isso. De forma inovadora, ele fez com que os retratados, com a inserção de seus trabalhos no quadro, dialogassem com o retratista, expondo-se também ao espectador, e, assim, possibilitou que todos dialogassem entre si através da arte do retrato. Portanto, para além de ser uma mera representação pictórica de artistas plásticos (o que por si já seria relevante), de ser um trabalho de metalinguagem visual (de extremo interesse pela auto-referência artística), essa série de Diálogos proporciona novas possibilidades expressivas para a arte do retrato e, desse modo, para a própria arte da pintura.

Marcley de Aquino
prefácio do livro Diálogos, de Fernando França