sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

O olhar de quem nos olha

No livro As Palavras e as Coisas, Foucault analisa a tela “As meninas”, de Velazquez. Ao ler o referido ensaio, fiquei com a sensação que as palavras do filósofo entraram na natureza mesma das pinceladas do artista. Para reiterar o caráter inovador dessa pintura, Foucault nos remete a um caleidoscópio de sentidos, no qual cada asserção é um espelho.

Ao conceber "As meninas", Velazquez intentou a que nós espectadores, soberanos ou não, nos tornássemos partícipes do quadro. Nesse retrato temos a impressão que algumas figuras nos observam (nenhuma novidade para um trabalho desse tipo). No entanto, o que diferencia tal pintura de outras congêneres é que nela vemos a reprodução de um pintor (Velazquez) a medir seu modelo. É, portanto, na possibilidade imagética do que seria retratado, na tela dentro da tela, que se instala a interação entre obra e espectador. Pela primeira vez o que está fora do quadro tem interesse para a compreensão da própria pintura.

Mas quem disse que as palavras de Foucault se prendem a coisa tão óbvia? A acadêmica exige de seus pares um aprofundamento teórico que ultrapasse o entendimento de um simples espectador. Assumindo tal condição, o filósofo francês elabora um texto esconso que visa transcender ao mero objeto artístico. Usando seus olhos de águia, só falta nos revelar o que há entre a tinta e a tela.

Sem a pretensão de desbotar a profunda análise de Foucault, que, com a ponta dos dedos, quase toca a quintessência do quadro de Velazquez, confesso que me embaracei com certas lucubrações suas. Numa delas, como se iluminado, o filósofo nos informa que o olhar que nos olha não é o olhar que olhamos, ou seria, o olhar que não olhamos é o olhar que não nos olha, ou melhor, no olhar que não olhamos está o olhar que nos olha. Afinal, quem olha quem?…

Não obstante percebermos o aspecto original de seu texto, como concordar com a assertiva de que a imagem do pintor, junto às demais personagens ali retratadas, está efetivamente a nos olhar! Ora, a crítica à arte é por natureza a quebra de qualquer ilusão. Transmutá-la para o mundo real é fazer perder-se nela sua fantasia.

Os críticos de artes plásticas são mestres em saber se, antes de ser retratado, o fulano comeu uma pêra, ou se, dentro em pouco, o sicrano irá ao teatro, ou coisas do gênero. E o texto de Foucault não foge a essa regra para nos apresentar seu conceito de elisão do sujeito através do olhar. Mesmo admitindo êxito nas amarras visuais que tornam sua análise criativa, não deixo de tremer lendo que, em “As meninas”, brevemente o pintor dará um passo para trás da tela, sumindo de nossa visão. Nesse trecho, não me furtei de imaginar um curador pedindo silêncio na exposição "Os meninos" (ver pinturas aqui), do pintor acreano Fernando França, senão os modelos ali pintados poderiam despertar de seu eterno sono…

Não seria cego a ponto de questionar o uso inovador do gênio espanhol, que deixa o espectador na posição de um possível retratado, e mais além, na visão das figuras para além do espelho. Sabemos que o poder da arte reside em nossa complacência frente ao objeto artístico. Arte é contemplação, ou, como diria o poeta, é fingimento. Fora disso é somente jogo de palavras, bloco esculpido, pincelada sobre pincelada... Eis o que diferencia o artista do filósofo. Eis o mistério da arte: Velazquez pode me enganar, Foucault não.

Para finalizar quero deixar claro aos discípulos de Foucault, antes que me reprovem e provem nessas palavras qualquer coisa tacanha, que concordo: em “As meninas”, tirante três súditas e o cachorro, outras oito figuras estão realmente a nos olhar... e parecem tão impressionadas que nem piscam!