quarta-feira, 1 de abril de 2009

O grande invento da Padaria Espiritual

Alguns estudiosos afirmam que o movimento literário Padaria Espiritual, surgido no Ceará em 1892 (saiba mais aqui), teria antecipado em três décadas o modernismo brasileiro, o qual se preconiza inaugurado pela Semana de Arte Moderna de 1922, ocorrida na capital paulista. Para comprovar tal argumento, costumam citar artigos do "Programa de Instalação" da Padaria, tais como o XIV - É proibido o uso de palavras estranhas à língua vernácula, sendo, porém, permitido o emprego dos neologismos do Dr. Castro Lopes - e o XXI - Será julgada indigna de publicidade qualquer peça literária em que se falar de animais ou plantas estranhas à Fauna e à Flora brasileiras, como: cotovia, olmeiro, rouxinol, carvalho etc, etc. E concluem que apenas esses dois pontos já garantiriam à agremiação cearense, no mínimo, o título de precursora do modernismo em nosso país.

Observamos que o modernismo se instalou por aqui, primeiramente, como bandeira de libertação para jovens artistas já enfadados com a arte acadêmica, "ultrapassada", ainda produzida no Brasil. Para eles, nosso país não podia ficar alheio às transformações sócio-culturais eclodidas na Europa e deveria libertar-se das antigas formas de ver a arte (novamente a luta pela liberdade aprisionada). A partir da imitação dos novos padrões do velho mundo, onde cada nação tentava afirmar sua identidade e cada artista, seu estilo, nossas obras se voltaram também para temas nacionais, de caráter contestador, chegando, por vezes, ao "desvairismo", como bem afirmou Mário de Andrade.

Não pretendo por mais lenha nesse forno acadêmico, investigando se a Padaria, por tudo que apresentou de revolucionário, foi injustamente preterida como nossa primeira manifestação modernista. Quem quisesse se aventurar nessa seara precisaria analisar a fundo os escritos do jornal O Pão (periódico editado pela Padaria) e encontrar nele textos que se ajustassem a tal teoria. Talvez não fosse uma tentativa inglória iniciar tal contenda, mas seria, certamente, atitude bastante provinciana (o que dista dos preceitos do grupo cearense). Ademais, o que foi a Semana de 22, senão o desdobramento das muitas manifestações de inconformismo aparecidas antes dela? Ficam as perguntas: poderíamos considerar Alberto Nepomuceno, que era contemporâneo dos padeiros, menos modernista que Villa-Lobos? O lirismo libertário de Bandeira foi posterior ao ajuntamento paulistano? E o que dizer da exposição de Anita Malfatti, em 1917, que redundou na avassaladora crítica de Monteiro Lobato (prova de que até os gênios se enganam!)?

De tal sorte, seria leviano afirmar que este ou aquele acontecimento fora pedra fundamental de tão produtivo movimento literário e artístico. Não descartamos a importância da Semana de 22 para consolidação do modernismo no Brasil, mas sabemos que tal institucionalização só ocorre devido ao poderio econômico de quem o faz. É algo assim feito os norte-americanos que tentam impor os irmãos Wright como inventores do avião, não reconhecendo que antes deles muitos outros deram seus vôos de metros, arremessados por catapultas até se despencarem pela ribanceira.

O “Prefácio Interessantíssimo”, de Mário de Andrade, publicado no livro Paulicéia Desvairada (1922) poderia ser considerado antes uma constatação que uma instauração de um movimento em potencial. Algo como o prefácio da peça Cromwell, em que Victor Hugo apresenta as bases do drama moderno, no qual o sábio escritor paulista inspirou-se, por certo. Aliás, como já dissemos acima, Programa de Instalação de um novo movimento artístico quem apresentou deveras foi a Padaria, no texto concebido por Antônio Sales.

Dentro do velho costume, no campo da arte, de surgir uma nova tendência a cada época, nenhum movimento foi tão bem servido de textos instauradores quanto o Dadaísmo, idealizado em 1916 (saiba mais aqui). Somente alguém iletrado, ou mal letrado, não conheceria a famosa receita de Tristan Tzara, Para se fazer um poema dadaísta:

___Pegue um jornal.
___Pegue a tesoura.
___Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar a seu poema.
___Recorte o artigo.
___Recorte em seguida com atenção algumas palavras que formam esse artigo e meta-as num saco.
___Agite suavemente.
___Tire em seguida cada pedaço um após o outro.
___Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco.
___O poema se parecerá com você.
___E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma sensibilidade graciosa,
___Ainda que incompreendido do público.

Pois bem, volto à Padaria e apresento um texto publicado no jornal O PÃO - XIII, a 1 de Abril de 1895, e assinado por J. (sem indicação precisa de autoria):

Um grande invento

Um americano de Philadelphia, que é ao mesmo tempo grande industrial e homem de letras, acaba de realizar, segundo afirma o Pennsylvanian Letter and Arts Magazine, um dos inventos mais prodigiosos deste século.

Trata-se de uma máquina de fazer versos, ou antes, de compor poesias. Parece que devia ser um maquinismo esse extremamente complexo; pois ao contrário disso afirma a respeitável revista que é da maior simplicidade. Pequenas lâminas de metal, onde estão gravados por um processo moderníssimo e rápido não todos os vocábulos da língua, mas somente aqueles que são dignos de figurar na linguagem das musas, e cuidadosamente graduadas estão dispostas em caixetas como as dos tipos, porém fechadas. Escolhidas as rimas, para o que tem a máquina um mostrador especial, e graduado por um pequeno botão o número de sílabas que deve conter cada verso, toca-se numa pequena manivela e as palavras vão caindo em um receptáculo e formando assim quadras, sextilhas, oitavas, sonetos, etc.

Para as escolas genuinamente nefelibatas há aparelhos especiais sem botão regulador do numero de sílabas.

A propriedade do invento foi adquirida mediante a soma de 30.000 dólares pela Boston Sonnetting Corporation Limited, que já está montando uma fábrica em John-Staunton City, perto de Albersmale.

Numerosas experiências têm sido feitas com as novas máquinas em 4 línguas: inglês, espanhol, francês e italiano. Os nefelibatas, decadistas, simbolistas, rosacruzes etc. estão entusiasmadíssimos. Têm saído da máquina poesias que ninguém duvidaria serem de Verlaine, Mallarmé, Moréas, ou Walt-Wittmann.

Fortaleza – 1895
J.

Ora, os escritos acima citados têm basicamente a mesma idéia, sendo a principal diferença o contexto em que foram empregados. A fórmula dadaísta, mesmo que irônica, apresenta-se como propositiva, tanto que influenciou diversas manifestações artística posteriores. Já o texto da Padaria, como era especialidade sua, satiriza essa possível maneira de fazer versos. Ou seja, nossos padeiros antecipam a fórmula rápida de se tornar poeta, e, por extensão, artista, que se daria a conhecer na Europa somente duas décadas depois!

Só não entendo por que razão esse originalíssimo artigo da Padaria Espiritual nunca fora ainda utilizado pelos estudiosos que defendem a vanguarda do grupo cearense para o Modernismo Brasileiro.

“Quando se tem fome, o pão, mesmo mal cozido, parece bom”
Máximo Gorki

Aviso aos navegantes: o artigo O grande invento da Padaria Espiritual encontra-se registrado na Biblioteca Nacional. Seu uso em outros meios deve citar a fonte e a autoria do texto.